As verdadeiras protagonistas deste enredo são a sensibilidade e a solidão
A conjuntura atípica do ano de 2020 propiciou, aos amantes de leitura, mais tempo para se dedicar a esta atividade. Dessa forma, me aprofundei, nos até então por mim desconhecidos, escritores catarinenses contemporâneos. Foi assim que conheci a estarrecedora obra “As fantasias eletivas”, de Carlos Henrique Schroeder, que não é apenas a mais sublime que apreciei no corrente ano, porém uma das mais instigantes que li durante minha trajetória como pesquisadora literária.
A priori, é a história de amizade entre a perspicaz Copi, uma travesti, e René, um frustrado recepcionista de hotel. No entanto, as verdadeiras protagonistas deste enredo são a sensibilidade e a solidão e, numa análise mais aprofundada, a dualidade entre a emoção exacerbada e produtiva de Copi, e o pragmatismo sufocante de René. Ele leva uma vida bitolada, exercendo uma rotina mecânica, num cronograma exaustivo de trabalho, sem ter praticamente dias de folga e vida privada, se entretendo tão somente com os despropositados dramas, e desejos, dos hóspedes. Ela, a personificação do ímpeto de vida, da espontaneidade, da sofisticação e da arte.
Quando suas vidas se chocam no momento em que Copi adentra o hotel para deixar um folder de seus serviços, nasce uma amizade e ambos encontram com quem dividir suas profundas solidões. Ela é uma grande leitora, intelectual e artista: escreve poemas, contos, e pratica a arte da fotografia, porém não tem com quem compartilhar seu conhecimento. Por isso, ao encontrá-lo, o faz de ouvinte de suas exegeses, como vemos neste excerto: “O que me move para a fotografia são as similaridades com a literatura. A fotografia quer congelar um instante, e a literatura, recriá-lo, e ambos têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas”. E, mais adiante: “Criar e contar histórias é desvelar imagens” (SCHROEDER, 2014, p.66).
A convivência é breve e, entrementes, duradoura, uma vez que ela vai modificando a maneira que René concebe a vida, sobretudo quando lhe mostra uma pasta cujo conteúdo são fotografias em palavras:
– O que você vê aqui?
– Fotos e textos?
– Não, Ratón, solidão, cara, solidão. Eu encontrei algumas coisas mais solitárias do que eu (SCHROEDER, 2014, p.67).
Copi, com sua Polaroid, apreende instantes poéticos e os discorre em palavras, cujas personagens são metáforas da solidão e que, ademais, demonstram a ultra sensibilidade da escritora. Quem, por exemplo, pensaria em escrever sobre as melancólicas notas de rodapé?
Um rodapé é o band-aid do texto, a moldura da tela. Milhares de editores, de todo o mundo, caçam rodapés com suas escopetas de DEL diariamente, e estima-se que em cinquenta anos os rodapés desaparecerão dos livros ou serão relegados às prisões acadêmicas. Na Croácia, rodapés neuróticos fugiram do final das páginas e finais de capítulos e invadiram textos, arbitrariamente. Você já ouviu o choro de um rodapé? Garanto que não há nada mais triste (SCHROEDER, 2014, p.80).
É pertinente acrescentar mais um dos poemas fotográficos de Copi, o que aborda sobre a ponte florianopolitana:
Nenhuma ponte é tão solitária quanto a Hercílio Luz, em Florianópolis. Desativada há anos, observa todos os dias a massagem que os carros, caminhões, ônibus e motos fazem nas suas duas primas e vizinhas, que ligam o continente à ilha de Florianópolis. Usada apenas como cartão-postal, a ponte se pergunta todas as noites quando chegará o dia em que, finalmente, vão destruí-la, pois não há dor maior que o da impossibilidade. Dizem os locais que Cruz e Souza, que morreu vinte e quatro anos antes do início da obra da ponte, teria escrito trinta e sete sonetos sobre uma ponte metálica que morderia a ilha todas as noites. Descontente com os sonetos, atirou-os ao mar, justamente no local onde a ponte foi construída (SCHROEDER, 2014, p.76).
Há outras descrições tecidas por Copi, as quais tratam da solidão a partir de fotografias de orelhões, ponteiros de relógios, bares de hotéis, marcadores de páginas, rejuntes, entre outros.
A narrativa é absurdamente bela, e um dos traços mais comoventes é que, apesar da carência intelectual de René, Copi consegue plantar uma sementinha literária nele, porque, após um tempo de convivência, ele tenta escrever um poemeto, ou seja, ela o seduz, não por seus trejeitos, mas pela arte, que é a mais contundente forma de envolvimento!