Bodega, bebida e armas: costumes do planalto


Foto da bodega do Museu Sítio Minguinho, localizado no município de Palmeira, PR/Acervo do autor

Essas casas de negócios eram locais de inúmeras operações

 

 

No Brasil, especificamente na região do planalto catarinense, ainda no século XIX, a bodega (bar ou armazém) representava um espaço de trocas e intenso convívio social. Essas casas de negócios eram locais de inúmeras operações, aonde se vendiam produtos provenientes do litoral – ferramentas, armas, remédios, tecidos e aguardente –, se emprestava a prazo e se comprava artigos da lavoura de subsistência, como feijão, fumo, milho e porcos. Também funcionavam como locais de confraternização entre moradores locais e tropeiros.

 

 

 

Nas primeiras décadas do século XX, para o morador da região de Canoinhas, era ali que estavam as informações, as pessoas e as mercadorias. Na bodega era possível efetuar a troca da erva mate por produtos como sal, pólvora, munição, querosene ou cachaça. Frequentemente eram locais de jogos de azar (dados, cartas) e apostas.

 

 

 

Neste ambiente o traço fundamental da diversão era beber. Beber coletivamente significava ratificar uma amizade ou laços de camaradagem, funcionando como instrumento de aproximação e corroboração de solidariedades, muitas vezes abrandando convenções sociais ou diferenças étnicas.

 

Foto da bodega do Museu Sítio Minguinho, localizado no município de Palmeira, PR/Acervo do autor

 

Paradoxalmente, ao aproximar os moradores da região que convergiam para determinada bodega, acabava incrementando o surgimento de tensões que, algumas vezes resultavam em ajustes de contas violentos, como o caso a seguir: “No dia dez de março de 1930 (segunda-feira), na casa comercial de João Pacheco dos Santos chegou Laudelino Chaves, já em completo estado de embriaguez. Armado de um facão pôs-se a discutir e a desafiar a todas as pessoas presentes, entre as quais o denunciado (Estanislau Ribas), que ali se achava desde algum tempo realizando algumas compras. Depois de muito falar e discutir, Laudelino saiu à procura de seu cavalo e da rua começou a desafiar a todos. Novamente voltou, e quando estava próximo da porta, foi recebido pelo denunciado, que o agrediu com um metro que estava em cima do balcão (…) não conseguindo bater-lhe o denunciado sacou então de um revólver e desfechou-lhe um tiro à queima roupa” (Processo Crime por Homicídio de Laudelino Chaves. Canoinhas, 1930).

 

 

 

 

Laudelino faleceu.

 

 

 

 

Cabe lembrar que a bodega era um ambiente onde as relações e os conflitos despertavam visibilidades através de atributos como a coragem e a defesa da honra, ou mesmo a habilidade em manusear armas.

 

 

 

 

 

Cerceamento e proibição dos costumes dos moradores da região

A análise dos jornais locais revelou a preocupação das autoridades dos municípios de Canoinhas e Três Barras – muito anterior ao trágico caso de Laudelino – com o consumo de bebidas alcoólicas e o uso de armas de fogo. Em 1915, esses jornais reproduzem algumas situações em que a mistura entre o consumo de álcool e os soldados acantonados em Canoinhas, por conta dos conflitos da Guerra do Contestado, resultou em problemas. Um desses casos ocorreu na virada do ano de 1915 para 1916, quando um soldado bêbado roubou uma máquina locomotiva da ferrovia e seguiu na direção Canoinhas – Três Barras até a pressão da locomotiva acabar (Jornal O Imparcial. Canoinhas, 10/05/1916). Semanas antes, outra nota do mesmo jornal apelava: “Evitar-se a venda da branquinha”, noticiando que um soldado, também acantonado em Canoinhas, havia ferido um bodegueiro que se recusara a vender pinga fiado. “Há tempos nossas autoridades solicitaram aos negociantes da vila para que não vendessem bebidas alcoólicas às praças e soldados” (Jornal O Imparcial. Canoinhas, 15/12/1915), demonstrando que o “problema” não era novo. Se por um lado essas ocorrências reforçaram os argumentos daqueles que pretendiam cercear o consumo do álcool, por outro podemos notar que as restrições pretendiam ser impostas inicialmente aos soldados, pessoas de fora da comunidade, há pouco tempo e provisoriamente ali estabelecidas. Também é pertinente atentarmos para a atitude do soldado bêbado, que roubou justamente uma locomotiva, um bem da Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande.

 

Foto da bodega do Museu Sítio Minguinho, localizado no município de Palmeira, PR

 

 

 

NOVAS LEIS!

Um conjunto de leis pretendeu impor novos limites considerados adequados, principalmente pelos interesses das empresas estrangeiras que se instalavam na região. O roubo da locomotiva, propriedade privada da estrada de ferro, motivou o desencadeamento de um processo de repressão e controle do modo de vida da população local, que não mais se adequava aos novos interesses presentes na região.

 

 

 

 

Tanto o porte de armas quanto o consumo de álcool eram costumes arraigados àquela sociedade e sobreviveram mesmo em conflito com a nova disciplina industrial que vinha sendo implementada no planalto norte. A bebida e o uso de armas são exemplos de como os costumes foram obstáculos às novas concepções que tentavam ser infligidas aos moradores locais. Nos momentos em que detinham as decisões de sua vida produtiva, essas pessoas constituíam ritmos irregulares de trabalho, nos quais as brechas para a bebida, para a festa ou para as brigas, eram possíveis e legítimas.

 

 

 

 

 

 

AS ARMAS E O COTIDIANO

As autoridades locais tentaram inúmeras vezes limitar a posse e utilização de armas de fogo em Canoinhas e região. O uso de carabinas “winchester” foi proibido, tanto para moradores quanto para viajantes, em todo o município a partir de 18 de janeiro de 1916 (Jornal O Imparcial. Canoinhas, 15/01/1916). Do mesmo modo, em 10 de junho de 1920 o Delegado Especial João de Deus Ferreira proibiu o uso de armas ofensivas (o que incluía revólveres, pistolas e armas brancas) dentro da Vila, “nas sedes de distritos; nas estações da estrada de ferro e em qualquer reunião popular dentro do município” (Jornal O Democrata. Canoinhas, 14/07/1920). Apesar da proibição, três anos depois é publicada nova nota reiterando a restrição às armas de fogo: “Estamos autorizados a informar que as autoridades do município vão tomar enérgicas providências contra o uso de armas proibidas apreendendo-as e promovendo o respectivo processo contra os infratores da Lei” (Jornal do Povo. Ouro Verde, 26/08/1923).

 

 

 

Também é importante avaliar a permanência da prática de andar armado como uma necessidade concreta de segurança para a vida e para a honra do morador do planalto. Este costume está intrinsecamente ligado à vida do sertanejo. Para ele, a arma surgia como uma necessidade básica, componente indispensável de sua indumentária e representava uma necessidade de defesa contra os perigos dos sertões do planalto e também enquanto instrumento indispensável à sobrevivência. As armas também funcionavam como dispositivo de proteção à sua honra.

 

 

 

 

 

 

CONTROLANDO AS BODEGAS

Outra forma de cerceamento desses costumes foi a limitação do horário de funcionamento das casas comerciais, as bodegas. A superintendência municipal de Canoinhas tentou estabelecer horários fixos para o funcionamento das bodegas, como atesta a Lei n. º 63 de 08 de Janeiro de 1917: “Ficam os comerciantes desta vila obrigados a fechar suas casas comerciais ao meio dia nos domingos e dias de feriados, o desrespeito resultará em multa de 50$000” (Jornal O Timoneiro do Norte. Canoinhas, 13/01/1917).

 

 

Foto da bodega do Museu Sítio Minguinho, localizado no município de Palmeira, PR

 

Certamente em função da ineficiência de tal lei, outra foi promulgada no ano de 1920, a Lei nº. 138 de 15 de outubro de 1920, que obrigou os comerciantes estabelecidos na vila a fecharem seus estabelecimentos comerciais às 14 horas nos domingos; sexta-feira da paixão; nos dias 1º de janeiro e 25 de dezembro e ainda nos demais dias considerados feriados por leis anteriores (Jornal O Democrata. Canoinhas, 06/11/920).

 

 

 

 

 

As tentativas de restrição aos horários de funcionamento das bodegas e ao uso de armas pode ser lido como absolutamente ineficientes. Durante anos essas leis continuaram a ser promulgadas, denotando a resistência da população local à tentativa de imposição de novas práticas e costumes, tendo em conta a permanente tensão estabelecida entre aquele que impõem uma ordem pré-definida e aquele que cotidianamente resiste a ela.

 

 

 

 

 

CONTROLE E DISCIPLINARIZAÇÃO

Em meio à implantação de novas concepções no planalto norte de Santa Catarina, a população de Canoinhas e região passou a ser objeto de um processo de controle e disciplinarização do tempo e do espaço de trabalho (da produção), e, também, do controle dos seus padrões de conduta familiar e social, que deveriam estar alinhados às expectativas instituídas pela sociedade em processo de transformação. O controle social da população passou também pela vigilância contínua da bodega, espaço reservado ao lazer dos moradores da região.

 

 

 

Os trabalhos desenvolvidos pelos sertanejos eram administrados pela lógica da necessidade, não pelo tempo do relógio, assim, ele era orientado pelas tarefas, as quais se davam em ritmos irregulares, com variações de atividade intensa e ociosidade plena. Suas práticas em maior parte não estavam ligadas a concepções econômicas, e passaram a ser cerceadas pela racionalização e por inovações impostas pelo capital em associação com a Superintendência Municipal.

 

 

 

 

 

 

Com o desenvolvimento do processo de positivação do conceito de trabalho, com a pretensão de torná-lo o princípio regulador da sociedade, o trabalho incorporou uma aparência digna e civilizadora. Dessa forma, houve explícita tentativa de estigmatização dos costumes da população de Canoinhas e região. Andar armado, estar na bodega, beber em horários de trabalho, eram práticas não compatíveis com o advento das prerrogativas estabelecidas pela nova disciplina do trabalho.

 

 

 

No entanto, a discriminação dos costumes e práticas dos moradores da região não impediu os sertanejos de considerá-los válidos, justos e a manter uma concepção que percebia como um direito a possibilidade de exercer tais práticas. Os habitantes da região continuaram não apenas frequentando as bodegas, mas também a andar armados, a beber quando bem entendessem, a desenvolver rixas e participar de brigas em diferentes situações de suas vidas. São exemplos de como os costumes foram obstáculos às novas concepções que tentavam ser impostas à região.





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