Narrativa nos leva a pensar no preconceito, e suas diversas facetas
O parâmetro que eu uso para julgar a qualidade de uma obra literária é a capacidade que ela tem de estarrecer, de tirar da zona de conforto, de levar à reflexão, à mudança, à evolução e, sobretudo, à empatia. Todas essas ações ocorrem ao ler Da vida nas ruas ao teto dos livros, da escritora, que reside em Santa Catarina, Clarice Fortunato.
Em súmula, o enredo é autobiográfico e aborda a história de uma mulher negra, de origem humilde, que viveu nas ruas e sofreu todos as formas de segregação social: “no Brasil, ser negro é sinônimo de exclusão e de todas as mazelas decorrentes desta condição” (FORTUNATO, 2020, p.14). Não obstante todas as perversidades a que foi submetida, estudou Letras, fez Mestrado e Doutorado, é professora, pesquisadora e escritora.
Numa análise mais profunda, a narrativa nos leva a pensar no preconceito, e suas diversas facetas, que está arraigado em nossa sociedade, a saber, a misoginia, que subestima toda mulher em qualquer esfera, o desprezo pelos negros, e a exclusão por classe social. Agora, leitor, imagine você pertencer a estes três segmentos e viver numa sociedade em que a maioria da população é machista, racista e pseudoburguesa. Certamente sua vida seria tão difícil que o simples ato de se alimentar, que para muitos é espontâneo, é uma verdadeira odisseia. Ou, então, ser desprovido do direito de frequentar uma escola: “Via-me horas e horas a contemplar crianças estudando e ansiava ser como elas, era dolorosa a exclusão daquele universo fascinante. Sentia-me como uma criança num castigo silencioso, enquanto outras brincavam ruidosamente ao redor. Eu experimentava, pela primeira vez, a sensação de me sentir “fora”, como se eu não existisse de fato – eu era invisível” (FORTUNATO, 2020, p.17).
Além da questão de gênero, de preconceito racial e do forte desprezo contra os menos favorecidos economicamente, a biografia de Clarice nos convida a pensar sobre a exaustiva vida das empregadas domésticas, um tema que é pouco analisado e contestado.
Depois de deixar sua cidade natal onde estava em condições paupérrimas numa fazenda em que imperava o Coronelismo e, por conseguinte, a violência, viver nas ruas com sua mãe até ela falecer, coabitar com uma irmã que a maltratava, Clarice vai trabalhar como doméstica. Neste ofício, que é tão cruel quanto a senzala, é explorada numa longa jornada de tarefas e, muito embora resida na casa da família, é tratada desumanamente.
Mesmo inserida neste ambiente hostil, ela tem resiliência para iniciar os estudos, ingressar na graduação e prosseguir sua carreira de intelectual das Letras. Quando está fazendo Doutorado Sanduíche na Inglaterra, sente a necessidade de escrever sobre seus percalços, como se fosse uma dívida histórica a ser sanada com as mulheres negras segredadas de antes, de agora, e que ainda virão: “Como mulher negra, desde muito cedo, tive a compreensão de que a minha cor tem uma simbologia ressignificada coletivamente: poder, força e resistência. Dessa forma, a força motriz da minha luta é uma herança ancestral” (FORTUNATO, 2020, p.14).
Além disso, os iníquos padrões de beleza impostos, especialmente às mulheres, dificultam ainda mais o processo de inserção social, de aceitação e de suposta igualdade. Clarice desmistifica a ideia de que, depois de sofrer a imposição da hegemonia, a autoestima pode ser recuperada facilmente: “Autorreconhecimento e autoamor não são processos simultâneos quando a referência de beleza difere daquilo que você vê no espelho. E assumir esse conflito interno é reconhecer o quanto somos atravessados pelo padrão estético racista que recobre a negritude/identidade, que enquanto indivíduo reconhece o quão visceral é a necessidade de pertencimento coletivo. Nessa perspectiva, seria hipócrita e leviano afirmar que o processo de aceitação é imediato e harmonioso. Ao contrário, são etapas muito lentas e, por vezes, dolorosas, que muito destoam dos discursos que se veem nas mídias” (FORTUNATO, 2020, p.108).
O livro é uma prova real e contundente para desestabilizar àqueles que afirmam haver igualdade de oportunidades às distintas etnias, gêneros e classes sociais, quando, na verdade, há uma perpetuação do sistema segregador da época colonial: “A condição marginal das mulheres negras está atrelada à continuidade do racismo sedimentado através de valores culturais elitistas” (FORTUNATO, 2020, p.20).
O enredo também nos convida a pensar nos traumas e na escrita como processo de transmutação dos mesmos, na medida em que, ao redigir, passamos por uma catarse, isto é, liberação das emoções e realinhamento das memórias: “Haverá um tempo em que todas as feridas deixarão de sangrar? Não! Não há nenhuma garantia. Porém, a desmaterialização da dor acontece quando a transformamos em força e a empregamos em prol de uma causa maior, deixando um rastro interessante na história” (FORTUNATO, 2020, p.20). A catarse ocorre com a escritora e, indubitavelmente, com os leitores, pois é impossível passar incólume, sem, ao menos, se sentir incomodado com tantas injustiças sociais que nos cercam. E, sobretudo, atestar que a literatura é, sempre, transformadora.