O Contestado: motivações e permanências


Força Pública do PR protegendo a Lumber durante a Guerra do Contestado/Arquivo

Em toda a região do planalto, havia a presença numericamente importante de antigos maragatos

 

Foram diversas as motivações que levaram os sertanejos a se oporem aos agentes responsáveis pelas injustiças que estavam sofrendo, e a comporem as trincheiras do movimento sertanejo do Contestado (1912-1916). Também houve uma regionalização das causas, ou seja, dependendo da região do planalto onde viviam, diferentes foram as razões que compeliram os sertanejos a lutarem na guerra.

 

 

 

A população da região de Taquaruçu e Irani via a guerra como um instrumento de luta para a vingança da morte do monge José Maria, um curandeiro que fora elevado ao grau de mártir após ser alvejado em combate no Irani, à frente dos caboclos. Esse fato também apresentava um significado intrínseco. Anteriormente, em torno de José Maria, haviam se reunido estratos da população do planalto catarinense, especialmente posseiros e sitiantes, que foram alvo de um processo de expulsão de suas terras, levado a efeito por coronéis daquele território, em decorrência da crescente valorização das terras.

 

 

 

Os moradores da região norte do planalto, especificamente entre os rios Timbó e Paciência, foram à guerra como reação à presença cada vez mais agressiva dos coronéis Fabrício Vieira e Arthur de Paula e Souza, que desejavam estender suas propriedades e sua influência política sobre aquela região, o que aumentava a pressão sobre sitiantes e posseiros dos vales dos rios Timbó, Tamanduá e Paciência. Assim, os coronéis, que atuavam de forma contundente na expansão fundiária e exerciam influência política, também passaram a enfrentar resistência, e o início dos embates incitou muitos indivíduos a aderirem ao movimento – inclusive famílias inteiras – que haviam sido vítimas de agressões perpetradas pelos coronéis da região.

 

 

 

Em toda a região do planalto, havia a presença numericamente importante de antigos maragatos, membros das forças envolvidas na Guerra Federalista (1893-1895) e que mantinham a rivalidade com o estado republicano. Sua presença, em todo aquele território, decorria da necessidade de muitos ex-combatentes maragatos se refugiarem após o término da guerra. Estes indivíduos desempenhariam papel decisivo no conflito, ao assumirem funções militares de comando nos redutos. Para esse grupo, o movimento do Contestado representou a volta à ativa e a possibilidade de revanche contra os republicanos. A título de exemplo, é possível citar o capitão Aleixo Gonçalves de Lima, na região de Três Barras.

 

 

 

 

Parte dos rebeldes que integrou o movimento sertanejo o fez como forma de se opor à tirania dos chefes políticos municipais, especialmente em Canoinhas – o Major Vieira – e em Curitibanos, o Coronel Albuquerque. Seu despotismo, em especial na região norte do planalto catarinense, gerava reações incisivas nos grupos de oposição. O início das hostilidades entre as forças legais e os caboclos, resultou em estímulo para alguns indivíduos aderirem às trincheiras rebeldes, com o fim de combater tais tiranos. Em Canoinhas, o professor Antônio Tavares (ex-Promotor Público da Vila) e Bonifácio Alves dos Santos, o Bonifácio Papudo, ex-subdelegado, aderiram ao movimento por esse motivo. Essas lideranças, somadas a Aleixo, em Três Barras, mobilizaram cerca de dois mil homens da região para enfrentarem as forças legais.

 

 

 

 

Outro elemento que compõe esse cenário multifacetado, principalmente na região norte do planalto, próximo à divisa (indefinida) com o estado do Paraná, é a Questão de Limites. Na região, a luta de parte dos integrantes do movimento representava uma tentativa de exigir o cumprimento da sentença de limites, resultado final da disputa judicial entre Paraná e Santa Catarina.

 

 

 

O aumento da tensão foi intensificado pela inserção do capital estrangeiro naquela região, representado pela construção do leito ferroviário da Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande e pela instalação e atuação de sua subsidiária, a madeireira e colonizadora norte-americana Southern Brazil Lumber and Colonization Company, na vila de Três Barras, em 1911, quando aquele município ainda se encontrava sob domínio do estado do Paraná. A atuação das duas empresas desalojou milhares de sertanejos, gerou impactos irreversíveis ao meio ambiente e dilacerou as práticas econômicas tradicionais e o modo de vida da população local. Ademais, o desemprego de trabalhadores, envolvidos com a construção da estrada de ferro, na região do vale do rio do Peixe, aumentou a tensão social em toda aquela região, contribuindo para a adesão de parte desse grupo ao movimento rebelde (MACHADO, 2004, p. 259).

 

 

 

 

Portanto, é admissível considerar uma conjunção de fatores no período que antecedeu o início do conflito, e que a abrangência de tais elementos era razoavelmente delimitada. Ou seja, fatores que foram determinantes para a adesão dos sertanejos em certa região não se manifestavam em outros locais.

 

 

 

 

Este cenário complexo, imerso em profunda tensão social, agravou-se. Após resistirem a repetidos ataques desfechados pelas forças legais, os rebeldes organizam, a partir de julho de 1914, uma ampla ofensiva no planalto catarinense. Os alvos de seus ataques desvelam o sentido do movimento: estações ferroviárias e instalações da Lumber Company; propriedades dos coronéis da região e prédios públicos. A racionalidade do movimento embasava-se na noção de que as autoridades constituídas (os governantes), o capital estrangeiro e a classe dominante (os coronéis), representavam os agentes que destruíram seu modo de vida, massacraram seus “irmãos” e cometeram injustiças.

 

Mapa mostra território sob domínio rebelde em outubro de 1914 (MACHADO, 2004, p. 380)

 

 

 

A partir de fins de 1914 e durante o ano de 1915, o movimento enfrenta o cerco implementado pelo General Setembrino de Carvalho, o qual dispunha de aproximadamente seis mil homens do exército brasileiro (50% de todo o contingente), e de outros dois vaqueanos, capangas dos coronéis da região, contratados para trabalhar na repressão. A desagregação do movimento se completou com a prisão do último líder rebelde, Adeodato, em julho de 1916.

 

 

General Setembrino de Carvalho em revista ao 56.º Batalhão de Caçadores em Canoinhas. Fundo da Campanha do Contestado/Arquivo História do Exército

 

 

 

 

No decorrer das décadas subsequentes, o trauma associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impôs, à população que reside no território Contestado, sentimentos impregnados de vergonha, culminando no silenciamento. Este fato se evidencia no amplo desconhecimento – não apenas em âmbito nacional, mas, também, no próprio território que fora palco do movimento – das motivações e consequências da guerra, ou mesmo da permanência de parte das razões que levaram à sua deflagração.

 

 

 

 

Além do trauma que deixou marcas indeléveis na população, uma estratégia de omissão em relação à memória do movimento, implementada pelos poderes públicos, resultou no silenciamento do Contestado. É razoável considerar, dentre as razões para esse silenciamento, a responsabilidade das oligarquias políticas sobre a deflagração do conflito, caso do governador, Coronel Vidal Ramos. Por outro lado, o Contestado caracterizou-se como movimento não-branco (apesar da presença de imigrantes e descendentes nas fileiras rebeldes), levado a cabo por uma população indesejada, residente em um estado no qual a narrativa de sacrifício, trabalho e conquista dos imigrantes tornou-se fundamental, inclusive para justificar políticas públicas que ao longo do tempo privilegiaram regiões de ocupação imigrante – especialmente alemães e italianos – em detrimento de outras regiões habitadas por não-brancos, que não receberam os mesmos recursos econômicos e benefícios estruturais.

 

 

Integrantes do 16.º Batalhão de Infantaria em uma trincheira da Vila de Canoinhas. Fundo da Campanha do Contestado/Arquivo História do Exército

 

 

Atualmente, a maioria dos municípios que integram o território do Contestado enfrenta um processo de expansão fundiária, outrora já vivenciado, que promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes proprietários rurais e de empresas multinacionais. Em decorrência deste processo, ocorre a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no extrativismo, que gera enorme passivo ambiental, além de manter uma estrutura social desigual e injusta, fato que na atualidade se manifesta através dos baixos índices de desenvolvimento humano, identificados na região do Contestado.

 

 

 

 

 

Muito se avançou nos estudos sobre o Contestado desde os tempos em que os rebeldes revoltosos ainda eram referenciados como “jagunços” ou “fanáticos”. A sofisticação das análises permitiu a ampliação da compreensão sobre esse movimento social, que foi um dos mais importantes e complexos de todos os tempos. É preciso que o exemplo da luta de mulheres crianças e homens que, espoliados, sacrificaram suas vidas para lutar pelo que acreditavam ser justo, faça eco em nossos tempos, tão conturbados e carentes de participação popular na transformação da sociedade.

 

Mapa: localização dos principais redutos rebeldes (MACHADO, 2004, p. 381)

 

 

 

 

 

 





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