Relato autobiográfico altamente sincero de um pai cujo filho não se enquadra nos padrões de normalidade
A literatura nunca traz respostas prontas, ao contrário, te faz refletir, te tira do chão, te sacode, te leva ao mais fundo das entranhas e da alma para que reflita sobre temas delicados, obscuros e desconhecidos. Ao ler o premiado livro “O filho eterno”, do escritor catarinense Cristovão Tezza, passei por diversos tipos de estados emocionais, a saber, da comoção ao estranhamento, da empatia à repulsa, do alheamento às mudanças de paradigmas.
A relação entre pais e filhos está presente na literatura desde os seus primórdios. No entanto, abordá-la com a franqueza que o faz Cristóvão Tezza é raro, pois trata da narrativa de um pai que teve um filho com Síndrome de Down e o desejou morto. E, antes que o leitor, comandado por princípios moralistas, se escandalize, vamos à exegese da obra, que não é científica, tampouco uma cartilha de bons costumes, mas um relato autobiográfico altamente sincero de um pai cujo filho não se enquadra nos padrões de normalidade impostos pela sociedade e que, com isso, se vê diante de um sem-fim de situações embaraçosas.
Para começar, o escritor escancara o egoísmo inerente à grande maioria dos pais e mães ao desejaram que seus descendentes correspondam às suas expectativas, o que não foi diferente com o protagonista, que, antes de ver a criança, já tinha toda sua vida planejada: “Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de mundo. Já tem pronta para ele uma cosmogonia inteira” (TEZZA, 2012, p.14). E, ademais, idealiza que o menino será a prova definitiva de suas qualidades, a personificação de seus atributos.
No entanto, numa longínqua década de oitenta, na qual as limitações tanto científicas quanto sociais para entender e conviver com uma síndrome eram ainda maiores, receber a notícia de que seu filho fugia ao esperado, destruiu suas expectativas, o constrangeu e o abalou:
“[…] ele não olha para a cama, não olha para o filho, não olha para os médicos – sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho” (TEZZA, 2012, p.32).
Logo, o narrador despende páginas para descrever, sem florear, as características dos portadores do mongolismo, e a difícil adaptação com os demais. Um dos traços mais acentuados pelo escritor, talvez justamente por ser profissional da área de Letras, é o da limitação linguística, ou seja, eles não conseguem apreender tempos verbais, sintaxe, marcas de plural e de gênero, frases completas e, muito menos, sentidos metafóricos. A abstração está além da compreensão. A cronologia também inexiste: “e cuja noção do tempo não irá muito além de um ontem imemorial, milenar, e um amanhã nebuloso. Para eles, o tempo não existe” (TEZZA, 2012, p.34).
Ao mostrar que nem a literatura nem o cinema abordam pessoas como seu filho, nem mesmo escritores como Dostoiévski, que estão em defesa dos segregados, o leitor começa a se identificar com o narrador e entender seu desapontamento e sentimento de incompetência ao conceber um filho cujas peculiaridades a sociedade está despreparada para lidar. Fomos educados numa dinâmica que segrega o que foge do padronizado, e todos estamos carregados de sentimentos excludentes.
E, à medida que o filho cresce, as idiossincrasias se acentuam, como vemos neste excerto: “Tudo funciona mal na síndrome. O mundo que ele vê não é o nosso mundo. Ele não vê o horizonte; nem o abstrato, nem o concreto. O mundo tem dez metros de diâmetro e o tempo será sempre um presente absoluto, o pai descobrirá dez anos mais tarde” (TEZZA, 2012, p.130).
Quando o pai começa a ter mais sintonia com o filho, um baque social o faz sentir a mesquinhez de outrora, a saber, a escola “normal” dispensa o menino, alegando incapacidade de atendê-lo:
Não queremos seu filho – para ele, há escolas especiais, que têm treinamento e condições de tratar dele. Nós não temos. Para o pai, levá-lo à escola especial foi reviver aquela sala da clínica do Rio, quando ele percebeu pela primeira vez que seu mundo de referências seria definitivamente outro. A criança também sentiu a diferença – nos primeiros meses de escola especial, o menino reagiu pelo isolamento e pelo silêncio. Não se reconhecia naqueles outros em torno dele. Durante algum tempo terá ainda uma relativa dificuldade para conviver com os seus iguais, aquele conjunto disparatado de casos a um tempo semelhantes e muito diferentes que partilham a escola com ele (TEZZA, 2012, p.167).
Assim, vemos que a rejeição se inicia pelo pai, logo pela sociedade e, depois, o próprio menino, ao se deparar com outros semelhantes na escola especial, se vê diante de um espelho, e não gosta do reflexo: “Como se o filho também absorvesse a resistência paterna ao resto do mundo, reproduzisse, pelo respirar, cada detalhe dos sentimentos do pai” (TEZZA, 2012, p.168).
Esses percalços revividos dia a dia levam o pai a concluir que o problema é ele, não o menino, uma vez que ouve, constantemente, uma voz preconceituosa e inquisidora que martela em sua mente: “você não conseguiu nem fazer um filho direito”, e que o leva a depositar na criança sua própria frustração. Já o infante, na inexistência da absorção de valores sociais, vive do modo mais autêntico possível, sendo conduzido pelos instintos e pela bondade inerente, pois a maldade exige uma sofisticação neurológica que ele não possui. O pai, por sua vez, é carregado de expectativas pragmáticas moldadas pelas estandardizações, as quais o filho é incapaz de atender. Ele simplesmente vive a alegria da existência, sem molduras, sem a escravização temporal, sem complexidades linguísticas e sem maniqueísmos.
Os grandes questionamentos que pairam após a conclusão da leitura são: mais feliz é quem se desprende da régua social que mede a normalidade, ou quem perpetua insanos padrões que a tantos causou e causa sofrimento? Não somos nós, com nossos julgamentos e, sobretudo, expectativas, nossos próprios algozes?