Quem foi Francisco de Paula Pereira?


Afilhado de Francisco de Paula Pereira é entrevistado pelo historiador Orty Machado em 1962/Acervo Fernando Tokarski

O papel do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer

 

 

 

É fato notório de que a outrora vila de Canoinhas, mais tarde convertida em distrito, e, posteriormente, em município, foi fundada por Francisco de Paula Pereira. A principal rua da cidade é identificada pelo nome do fundador, assim como a antiga localidade de Lagoa do Norte, às margens do rio Iguaçu, que a partir de 1938 recebeu a denominação de Paula Pereira.

 

 

 

Contudo, há aspectos da trajetória de vida daquela ilustre figura – especialmente após sua chegada à nossa região – que permanecem desconhecidos por muitos concidadãos.

 

 

 

 

Oficialmente, Francisco de Paula Pereira adentrou o planalto norte catarinense em consequência de violentas disputas políticas, deflagradas na região de São Bento do Sul. No território onde está localizado o município de Canoinhas, encontrou ricos ervais, estabeleceu moradia e deu início à povoação, juntamente com membros de sua família, peões e agregados.

 

 

 

Em julho de 1880, Francisco fora eleito Juiz de Paz em São Bento do Sul. Dentre suas atribuições, incumbia ao Juiz de Paz fiscalizar a execução de obras, efetuar prisões e julgamentos relativos a crimes de menor potencial ofensivo, presidir mesas de votação, etc. Dois anos mais tarde (1882), foi novamente eleito para o cargo. Posteriormente, tornou-se um dos precursores do movimento republicano, tendo assinado um manifesto republicano publicado em 1886 no município de São Bento do Sul (a República seria instaurada somente em 1889). Ainda no decorrer do ano de 1886, Pereira, à época lavrador e Juiz de Paz, membro do Partido Liberal, com o propósito de evitar a derrota de seu partido, promoveu a anulação da segunda eleição municipal de São Bento do Sul, e protelou o pleito para 12 de outubro do mesmo ano. Em decorrência do ato de anulação, foi processado judicialmente. Não obstante o imbróglio jurídico e político, Pereira foi novamente eleito Juiz de Paz, e assumiu a função em janeiro de 1887 (TOKARSKI, 2002, p. 36).

 

 

 

 

Transcorrido pouco mais de um ano, no dia 3 de maio de 1888, data que mais tarde seria reconhecida como o dia de fundação do município, o lavrador e político proeminente instalou-se às margens do rio Canoinhas.

 

 

 

 

Nos primeiros anos de ocupação, sob a liderança de Francisco de Paula Pereira, sucedeu um fato marcante: a passagem do monge João Maria. A figura do peregrino, ainda hoje considerado um santo popular, influenciou peremptoriamente os líderes da comunidade, em especial, Pereira. Logo após o advento do monge, ele foi conduzido até a casa de Pereira, e lá passaram a reunir-se centenas de pessoas. Próximo ao lugar, situada no alto de um morro, Pereira erigiu uma grande cruz. Por sua vez, Joaquim Branco, outra liderança local, construiu uma capela, da qual adveio o nome de Vila de Santa Cruz de Canoinhas. As pessoas costumavam dizer que naquele local o monge havia instalado ‘a sua oficina’ (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p.41).

 

 

 

 

Há outros autores que relatam a aparição do monge João Maria em Canoinhas. De acordo com a descrição de Oswaldo Rodrigues Cabral, Francisco de Paula Pereira era “muito fanático”, pois teria levantado uma cruz no lugar em que João Maria dormia, no alto de um morro. Nas adjacências, havia uma vertente de água limpa, da qual o monge bebia, de modo que “os fanáticos” acreditavam se tratar de água santa, que curava as pessoas que dela bebessem ou se banhassem. A mando de Pereira, foi erigida uma cruz preta naquele local e quando o Monge partiu, construiu-se uma capela onde, todos os domingos, ali iam cantar a ladainha (CABRAL, 1979, p. 321).

 

 

 

 

Após conviver com o monge, Francisco de Paula Pereira adotou um conjunto de práticas religiosas e as incorporou ao cotidiano da povoação. Decorrido pouco tempo, uma parcela da imprensa do Paraná já alcunhara Francisco de Paula Pereira e os demais moradores de Canoinhas como “bandidos fanáticos”, e o líder da povoação de “Bispo” ou “monge”. De forma célere, as páginas dos jornais noticiavam a presença de um contingente formado por 500 homens armados, situação que se agravou após uma entrevista concedida pelo secretário de Estado do Paraná, Cândido de Abreu, segundo o qual “tem grutas, parodiando os antigos cristãos, hermidas, uma capela de culto extravagante, distintivos, sinais e outros aparatos religiosos. Os fanáticos trajam pala e bombacha”. Em sua entrevista, o político paranaense também afirmou que “a doutrina pregada pelo Bispo é a mesma de Antônio Conselheiro” (Jornal A República. Ano XII, n.º 267. Curitiba, 22/12/1897).

 

 

 

 

Por conseguinte, é plausível concluir que o agravamento da tensão entre os estados do Paraná e Santa Catarina, resultante da Questão de Limites, impeliu o político paranaense a criminalizar publicamente a pequena povoação liderada por Francisco de Paula Pereira. Ademais, a tentativa de incutir a imagem do Conselheiro suscita a hipótese da busca por legitimidade para uma eventual intervenção armada, tal qual ocorrera na localidade de Entre Rios, município de Lages (MACHADO, 2204, p. 78).

 

 

 

 

O Diário do Paraná, adversário político do jornal A República, ambos controlados por grupos antagônicos, constituídos por políticos republicanos paranaenses, passou a desmentir as informações que haviam sido publicadas, legando à posteridade um conjunto de elementos bastante amplo. A título de exemplo, um comerciante de erva-mate que atuava na região de Canoinhas, Augusto Roderjan, afirmou que Pereira era negociante pacífico, indiferente à política, “que compra erva-mate para remeter em balsa para o Rio Negro”. Afirmou, também, que Francisco Pereira “é curandeiro e intitula-se espírita, o povo o venera e o considera um homem superior” e que “essa gente parece não se preocupar com política” (Jornal Diário do Paraná. Ano II, n.º 69. Curitiba, 31/03/1897).

 

 

 

Escultura em homenagem ao monge

Nesse ínterim, foi publicada uma carta do reverendo Vicente Bronikowski, Vigário de Rio Negro, escrita em 15 de março de 1897. Segundo o religioso, ele estivera em Canoinhas por um período de dez dias, recepcionado por Chico Pereira e cerca de cinquenta pessoas, as quais não aparentavam hostilidade. Relata em sua carta que realizou dezessete batizados e cinco casamentos. O reverendo afirmara que havia na comunidade entre quinhentas e setecentas pessoas, e que o número de batizados e casamentos deveria ter sido muito maior, todavia, os moradores lhe informaram que esperavam por outra pessoa para realizar as cerimônias, um “Profeta” (Jornal Diário do Paraná. Ano II, n.º 69. Curitiba, 31/03/1897). Certamente, o profeta esperado pelos canoinhenses era o monge João Maria, que costumava realizar gratuitamente batizados e outras cerimônias religiosas.

 

 

 

 

Francisco de Paula Pereira faleceu em outubro de 1898, e a capela erigida em homenagem ao monge permaneceu sob os cuidados de uma comissão, a cujo presidente os caboclos levavam ofertas para a “Santa Cruz” (CABRAL, 1979, p. 151), nome que seria adotado a partir de 3 de julho de 1902, quando a povoação assumiu a condição de distrito de Curitibanos, com o nome de Santa Cruz de Canoinhas. A autonomia foi obtida em 12 de setembro de 1911, data a partir da qual a localidade foi reconhecida como município do estado de Santa Catarina, emancipado em meio à elevação da tensão com o estado do Paraná, em decorrência da Questão de Limites.

 

 

 

 

Desse modo, percebe-se que a narrativa oficial muitas vezes omite, oculta e oblitera os indígenas, ex-escravos, caboclos, tropeiros, monges, peões e agregados, que estiveram presentes na origem do município.

 

 

 

 

É imperativo que os indivíduos residentes em determinada região conheçam o processo histórico que os conduziu até o momento presente. Entender esse processo histórico permitirá ao cidadão compreender os conflitos étnicos, sociais e religiosos que subjazem na base de sua história e de seu município. Rememorando as contundentes palavras de Peter Burke: “O papel do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. 2.ed. rev. Florianópolis: Lunardelli, 1979.

 

 

MACHADO, Paulo Pinheio. Lideranças do Contestado: a formação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas, SP. Editora da Unicamp, 2004.

 

 

TOKARSKI, Fernando. Cronografia do Contestado: apontamentos históricos da região do Contestado e do sul do Paraná. Florianópolis: IOESC, 2002.

 

 

VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

 

Fontes

Jornal A República. Ano XII, n.º 267. Curitiba, 22/12/1897

Jornal Diário do Paraná. Ano II, n.º 69. Curitiba, 31/03/1897

 

 

 

Na próxima coluna

Tudo sobre a trajetória do Monge João Maria de Agostini: o nascimento na Itália, a morte nos EUA e sua influência sobre a região do Contestado.

 





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